Olhares que se cruzam

É muito fácil encontrar pessoas com idades acima de 30 anos dizerem algo assim: ‘Quando meus pais me olhavam, já entendia tudo!’. A colocação é feita para descrever os momentos em que os rebentos estão em alguma peripécia dentro ou fora de casa, especialmente na frente de visitas.

Infelizmente, esta comunicação do olhar se enfraqueceu ou se perdeu. Tenho a sensação que as gerações mais recentes não entendem ou não querem acatar as intenções dos pais. Na maioria dos casos, tem que falar alto e, mesmo assim, a desobediência ou desacato é o efeito imediato mais comum.

A bem da verdade, muito disso deve-se ao despreparo e desinteresse em acumular o mínimo de conhecimento e construir uma autoridade sobre os filhos capaz de determinar os limites. Mas isso é uma outra história. Quero aproveitar o exemplo do poder da comunicação de um simples olhar e refletir sobre o olhar do Cristo torturado sobre o covarde Pedro.

Quando se fala na madrugada do julgamento fraudulento de Jesus um dos tópicos que mais ganha destaque nas homilias é a negação do apóstolo Pedro. Repete-se à exaustão o aviso profético de Jesus e, com generosa dose até de maldade, enfatiza-se a postura medrosa do discípulo.

Entretanto, há um momento brevíssimo que, muitas vezes, passa despercebido. Após a terceira negação de Pedro, o médico Lucas registrou: “E, virando-se o Senhor, olhou para Pedro, e Pedro lembrou-se da palavra do Senhor, como lhe havia dito: Antes que o galo cante hoje, me negarás três vezes.” (Lucas 22:61)

Gostaria de poder estar no local do julgamento e flagrar o momento que, em meio à turba, os olhares de Cristo e do apóstolo se cruzam. A sequência da narrativa de Lucas afirma: “E, saindo Pedro para fora, chorou amargamente.”

Naquela altura da madrugada Jesus já estava sendo violentado física e psicologicamente. Todas as pressões haviam sido desencadeadas: abandono dos amigos, hostilização dos inimigos, moído pela agonia no Getsêmani, torturado pelos carrascos. Contudo, o Mestre do Amor teve a possibilidade de olhar para Pedro.

O passo seguinte do apóstolo foi chorar amargamente. Apesar disso, tenho absoluta convicção que naqueles milésimos de segundos ao invés de sentir o peso de uma condenação, repúdio, ódio, ressentimento ou qualquer coisa do gênero, ele sentiu perdão, acolhimento, compreensão das fraquezas e, sobretudo, aquele breve olhar comunicou amor.

Há muito que aprendermos com aquele breve olhar. Embora alguém possa dizer que Jesus só olhou com misericórdia porque é o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, isso não nos isenta de, pelo menos, tentar imitar os seus passos.

Infelizmente, desenvolvemos uma habilidade sinistra de olhar para condenar, repudiar, recriminar, humilhar, zombar, denegrir entre outras intenções dos olhares que nos aprimoramos em lançar uns sobre os outros.

Temos uma agilidade imensa para sempre ressaltar o que há de pior no vizinho, mas fechamos os olhos para o que existe das coisas boas, agradáveis, dignas de serem comentadas e até imitadas.

Não alimento a utopia de que vamos ‘mudar o mundo’ se passarmos a olhar uns para os outros de uma forma diferente, mas, com certeza, podemos conquistar alguma melhora interna em um universo tão vasto e desconhecido quanto o que abriga as galáxias: o nosso espírito.

Um novo olhar uns sobre os outros vai resultar em alegria, descoberta, cura, perdão, liberdade no corpo e na alma. Essa mudança de postura na observação uns dos outros, exige disciplina e um esforço concentrado, pois a tentação de embrutecer-se vai estar sempre presente. Contudo, se nos dispusermos a isso e contarmos com a ajuda dAquele que pode curar nossa visão, poderemos experimentar alegrias verdadeiras e duradouras.

É mais fácil destruir

Nem sempre desfazer o que os outros fizeram é garantia de registrar a própria obra na História


Dar uma bela marretada em uma parede é tarefa que, via de regra, cabe aos profissionais da construção civil. O mesmo pode ser feito por qualquer pessoa que está a fim de fazer uma pequena ou grande alteração em qualquer edificação.
Se partir do exemplo pessoal, tenho que confessar que não suporto os elementos areia, pedra, bloco, cimento e demais apetrechos do que chamam de uma boa massa.

Gosto de morar, trabalhar, estudar e fazer qualquer outra atividade em obras bem edificadas, mas prefiro exaltar o trabalho de quem sabe e gosta de construir. Em função disso, para mim é muito mais cômodo pegar uma marreta e derrubar uma parede do que colocá-la em pé.

O processo de demolir uma casa ou derrubar uma parede também exige algum preparo para determinar onde jogar o entulho, como evitar riscos à integridade física dos envolvidos na tarefa, entre outras questões. Entretanto, isso não é nada se comparado ao trabalho de edificação.

Colocar uma parede em pé exige cuidado desde a escolha do material (bloco, areia, cimento, ferro e não sei mais o que), profundidade do alicerce considerando o quanto se pretende subir.
A esmagadora maioria de nós desconhece o imenso trabalho que ocorre muito antes de que uma simples parede tenha ficado em pé. O desenho do engenheiro, a seleção do material, a determinação das medidas, a projeção da resistência, durabilidade, funcionalidade etc.

São envolvidos os mais diversos tipos de profissionais. Desde o vendedor da loja de material de construção até o gesseiro que dá o retoque final. Quem já construiu uma casa ou um cômodo 4x4 para abrigar a família, ter um cantinho especial na casa ou simplesmente para amontoar os cacarecos sabe, também, o quanto de dinheiro voa da carteira.

As dificuldades ficam patentes só de pensar. Isso porque refiro-me às coisas físicas. Se partimos para a edificação espiritual, aí o assunto engrossa. É muito mais fácil derrubar o humor de uma pessoa do que levantar. É muito mais fácil ferir que cuidar, odiar que amar, abandonar que proteger. As ações destrutivas alimentam o que há de pior em nós e são muito mais fáceis de executar.

Já a edificação de valores morais e espirituais exige tempo, renúncia, visão, perseverança, fé, compaixão, entre outras virtudes. Edificar também exige uma cavalar dose de humildade. Isso porque dificilmente encontramos alguma coisa “virgem”, isto é, onde ninguém tocou, onde ninguém nunca semeou.

Hoje, em qualquer campo do conhecimento humano é possível encontrar algum registro desde o mais rudimentar até o mais avançado que foi teorizado e testado por algum antecessor.

Sendo assim, é preciso aceitar, com a humildade, que não precisamos “inventar a roda”. Podemos ajudar a melhorar, aprofundar, ampliar o entendimento e a prática de um conceito, mas devemos ter, no mínimo, a dignidade de reconhecer o que foi feito por quem veio antes.
À medida que vamos conhecendo algum assunto, quer pela pesquisa, quer pela prática ou pelo misto dos dois, é possível que sejam identificados erros, falhas nos procedimentos de quem veio anteriormente. Contudo, isso não dá a ninguém o direito de tentar aniquilar, apagar, extinguir, fazer esquecido o nome, a memória ou as obras que foram edificadas antes de nós.

Mesmo assim, não é raro encontrar gente que parece saber mais do que todo mundo junto. É possível encontrar estes indivíduos na família, no trabalho, na igreja e demais círculos sociais. Uma geração pode tentar aniquilar os marcos da geração anterior; o marido pode sempre desfazer do que faz a esposa; o filho, nunca acatar o que fez o pai e por aí vai. As consequências disso? Aquele que tenta aniquilar, acaba por ser aniquilado.

Pode parecer simplista demais, entretanto, deixar a nossa marca, sem tentar apagar a do outro é mais inteligente e benéfico para todas as partes.

Verdades incomodam

Somos viciados em discursos de mentira. Via de regra, preferimos o rival que afaga e bajula, ao amigo que dá o golpe certeiro e aponta nossos erros.
Quando bajulados, tendemos a acreditar na mudança de postura do bajulador. Queremos massagear o próprio ego nos iludindo que, se o rival nos acaricia, é porque todos os outros são opositores que estão apenas fazendo birra para não cumprir com a nossa 'soberana' vontade.

Olhar um no olho do outro e dizer o que realmente sentimos e desejamos, realmente não é fácil. É mais simples minimizar a questão, jogar para debaixo do tapete, fingir que não está acontecendo nada. Infelizmente, nos aperfeiçoamos nesta prática.
Sempre ouvi os mais velhos usarem a expressão que se deve "lavar a roupa suja em casa". Contudo, parece que preferimos manter a roupa bem encardida e, pior, sujamos ainda mais quando resolvemos falar de nossas pendengas com todo mundo, exceto com as pessoas que deveríamos.

Para envenenamento da nossa própria alma, vamos acumulando lixo ao longo da jornada. No diário da vida, vamos deixando páginas manchadas, mal escritas, histórias mal resolvidas.
O apóstolo Paulo escreveu aos cristãos da cidade de Éfeso o seguinte: "Portanto, cada um de vocês deve abandonar a mentira e falar a verdade ao seu próximo, pois todos somos membros de um mesmo corpo" (Ef. 4.25).
Embora ele estivesse doutrinando aos seguidores de Cristo como igreja instituída e regulando a forma de convivência, o princípio é universal. Ou seja, falar a verdade sempre é aplicável para qualquer grupo social ou religioso.

Esta prática evitaria muitos transtornos dentro de casa, por exemplo. Faria muito mais bem à família se a mulher dissesse ao marido que não gostou deste ou daquele comportamento do que simplesmente fingir que nada aconteceu.
Existe uma cena que é recorrente: o marido chega em casa, entra no quarto, olha a esposa no canto, ela está chorando. O homem, ao menos aquele que é decente, pergunta: 'que você tem?'. A resposta, via de regra é: 'nada não'.
Reconheço que a mulher é um mistério em si mesma. Para ser encantadora, ela passa pela vida dos homens com a tarefa de deixá-lo inculcado, incomodado. Entretanto, a resposta 'nada não' é uma mentira que elas se acostumaram a dizer e os homens se acostumaram a ouvir.

Por não estarmos acostumados com a verdade, quando ela vem, reagimos da pior maneira. Não nos propomos a ponderar os fatos. Colocamo-nos na condição de vítima e dali não nos demovemos até que tudo desmorone.
Também não é incomum os filhos darem a mesma resposta aos pais. Os motivos para esses diálogos nunca concluídos, muitas vezes, são por razões ridículas: uma testa franzida em público; um atraso na hora de pegar da escola; um possível comentário que o pai ou a mãe tenha feito. Enfim, são diversas possibilidades idiotas que podem criar cicatrizes profundas.

Quando as pedras da mentira já estão num amontoado suficientemente grande e desordenado para despencar sobre nós, buscamos culpados. Assim como é no micro universo da família, procedemos no trabalho, na igreja, na escola e por aí vai. Erramos como filhos, pais, patrões, empregados, amigos, colegas.
Não sou adepto do microfone na mão, carro de som ou megafone para sair bradando aos quatro ventos as verdades que queremos dizer. Como já citado, a roupa suja tem que ser lavada em casa.

Vai doer? Vai. Vamos chorar? Com certeza. Vai ser tudo de uma vez, com todas as pessoas em todos os núcleos sociais que interagimos? Não! Mesmo porque nem suportaríamos tal avalanche.
Contudo, precisamos deste choque da verdade. Precisamos parar de nos escondermos nas casas de palhas, edificadas sobre areia movediça. Não é fácil, mas é possível.

"Sinto vergonha de mim"



Interpretação: Rolando Boldrin

SINTO VERGONHA DE MIM

Cleide Canton - Site http://www.paginapoeticadecleidecanton.com/sintovergonha.htm:

Sinto vergonha de mim
por ter sido educador de parte desse povo,
por ter batalhado sempre pela justiça,
por compactuar com a honestidade,
por primar pela verdade
e por ver este povo já chamado varonil
enveredar pelo caminho da desonra.

Sinto vergonha de mim
por ter feito parte de uma era
que lutou pela democracia,
pela liberdade de ser
e ter que entregar aos meus filhos,
simples e abominavelmente,
a derrota das virtudes pelos vícios,
a ausência da sensatez
no julgamento da verdade,
a negligência com a família,
célula-mater da sociedade,
a demasiada preocupação
com o "eu" feliz a qualquer custo,
buscando a tal "felicidade"
em caminhos eivados de desrespeito
para com o seu próximo.

Tenho vergonha de mim
pela passividade em ouvir,
sem despejar meu verbo,
a tantas desculpas ditadas
pelo orgulho e vaidade,
a tanta falta de humildade
para reconhecer um erro cometido,
a tantos "floreios" para justificar
atos criminosos,
a tanta relutância
em esquecer a antiga posição
de sempre "contestar",
voltar atrás
e mudar o futuro.

Tenho vergonha de mim
pois faço parte de um povo que não reconheço,
enveredando por caminhos
que não quero percorrer...

Tenho vergonha da minha impotência,
da minha falta de garra,
das minhas desilusões
e do meu cansaço.
Não tenho para onde ir
pois amo este meu chão,
vibro ao ouvir meu Hino
e jamais usei a minha Bandeira
para enxugar o meu suor
ou enrolar meu corpo
na pecaminosa manifestação de nacionalidade.

Ao lado da vergonha de mim,
tenho tanta pena de ti,
povo brasileiro!


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"De tanto ver triunfar as nulidades,
de tanto ver prosperar a desonra,
de tanto ver crescer a injustiça,
de tanto ver agigantarem- se os poderes
nas mãos dos maus,
o homem chega a desanimar da virtude,
A rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto"
Ruy Barbosa

 
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